No Brasil, há mais de 80 milhões de cidadãos
negros que lutam todos os dias pelo direito básico da igualdade racial. A
segunda maior nação negra do mundo - atrás apenas da Nigéria, na África –
abriga um vasto número de comunidades quilombolas, que se desdobram para
criar alternativas de renda e atuar num mercado de trabalho declaradamente
fechado para a mão de obra afro-brasileira.
Neste segundo programa da série ‘A Cor da
Cultura’, a equipe do ‘Ação’ visitou algumas comunidades negras pelo país. Em
Alagoas, terra de Zumbi dos Palmares, descendentes de escravos sobrevivem do
artesanato que nasce do barro e da palha. Há também um projeto, elaborado em
parceria entre a Secretaria de Defesa e Proteção às Minorias (Sedem) e o
Governo de Alagoas, de se construir um grande memorial ao líder negro na
Serra das Barrigas.
“Neste local ficava a antiga capital do Quilombo
dos Palmares. Temos vários objetivos, entre eles resgatar a história do negro
no Brasil e gerar uma sustentabilidade econômica para os moradores da área”,
diz o secretário Zezito de Araújo, da Sedem. Ainda em fase de captação de
recursos, o projeto, quando vingar, servirá como um valioso fomentador do
turismo na região.
O antigo quilombo ficava no ponto mais alto da
Serra e era formado por onze pequenas vilas. Nesta mata, há mais de 200 anos,
Zumbi dos Palmares liderou um movimento pela liberdade. Hoje, a luta é pela
sobrevivência para centenas de famílias que vivem na serra. Dona Marinalva,
por exemplo, é uma humilde artesã local. “Trabalho é de ano em ano quando as
usinas botam para moer. Terminou aquela fase, aí acabou. É muito difícil”,
desabafa.
Em União dos Palmares, no antigo quilombo de
Muquém, a estrada de terra conduz até a tradição da cerâmica. É a única fonte
de renda da comunidade. “Quando a gente era pequeno e não podia comprar um
brinquedo, eu ficava olhando a minha mãe fazer panelas. Quando não estava
ajudando ela, pegava um bolinho de barro e fazia um cavalinho, um boneco, uma
casinha para brincar”, lembra a também artesã Irinéia Silva. O que era farra
de criança se transformou em trabalho para toda a família de Irinéia.
A palha é que dá o tom do trabalho comunitário em
Palmeira dos Negros, município de Igreja Nova. “Nós éramos muito
discriminados aqui por sermos negros. Houve um tempo em que até para um aluno
negro estudar na comunidade era complicado”, conta o líder José Sandro, ao
apontar, com orgulho, a crescente produção de chapéus e cestos de palha da
comunidade.
Já em Santa Luzia do Norte, as boleiras do
quilombo têm mais sucesso nas vendas. Com o apoio da Sedem elas desenvolvem
um projeto de geração de renda através da fabricação de pé-de-moleque e bolos
de sabores variados. Naquela cidade, as receitas que nasceram na Senzala
ainda são feitas de maneira artesanal.
É a doceira Maria Madalena dos Santos quem
explica o passo-a-passo. “A gente vai para a roça, arranca a mandioca, lava,
põe para descansar no tonel. Depois de cinco dias no tonel, a mandioca vai
para um saco e passa por outra lavagem, mais apurada. Vem do saco para a
prensa e da prenda para a peneira. Só depois de todas essas etapas que a
gente prepara o pé-de-moleque. Cansa demais”.
Negros vivem “ao Deus-dará”, segundo Ruth
Pinheiro
Na visão de Ruth Pinheiro, presidente do Centro
de Apoio ao Desenvolvimento (CAD), uma importante ONG engajada em projetos de
valorização do cidadão negro, “o Brasil faz questão de esquecer a
contribuição dos negros para a vida social do país e isso influencia até hoje
as nossas diferenças educacionais e econômicas. Isso tem resquícios na
escravidão. Quando a lei Áurea foi assinada, ninguém se preocupou em criar
medidas para reparar aquela população imensa que ficou ao Deus-dará”, avalia.
“Não foi como os europeus, que também trabalharam
muito no nosso país, mas contaram com um mínimo de incentivo possível: um
documento, um pedaço de terra, um empréstimo para começar a vida com
dignidade. Você não vê descendentes de imigrantes numa situação de
marginalidade, de prostituição, nos dias de hoje. Mas vê uma grande parcela
de negros nestas posições”, emenda a presidente do CAD.
No Maranhão, o problema é um pouco mais complexo.
As comunidades se unem para garantir a posse da terra que um dia abrigou
tantos quilombos. Na verdade, há mais de 400 comunidades quilombolas na
região e, na maioria delas, os moradores encontram muitas dificuldades para
garantir o sustento das famílias. O artesanato é uma solução para gerar
renda.
“Nós podemos explorar aquilo que nos interessa
porque a terra é nossa. Quando a gente está numa terra alheia, a gente não
tem nem como planejar um cultivo”, diz Raimundo França, morador de Santo
Antônio dos Pretos, uma comunidade quilombola que fica no município de Codó,
no interior do Maranhão. Os habitantes se mantém há décadas com apenas duas
atividades: a quebra do coco babaçu e o trabalho na roça.
Com a ajuda do Centro de Cultura Negra e da
Sociedade Maranhense de Direitos Humanos, os habitantes desta comunidade já
conseguiram o título de suas terras. O documento sai em nome da Associação
dos Moradores. A posse das terras remanescentes dos quilombos é um direito
garantido pela constituição brasileira. “Atualmente já reconhecemos e mapeamos
443 comunidades quilombolas aqui no Maranhão, mas tituladas só tem 17, dez
delas pelo Governo Federal e sete pelo Governo Estadual”, contabiliza Ivan
Costa, coordenador do projeto Vida de Negro.
Há uma comunidade em Alcântara, Norte do
Maranhão, que está na fila pelo reconhecimento. “Nós vamos viver outra vida
quando aquilo que é nosso estiver nas nossas mãos”, prevê a dona de casa
Irene de Jesus. O barro que se transforma pelas mãos das mulheres da vida ao
povoado. Geralmente, elas aprendem o trabalho antes dos sete anos. As
mulheres reuniram as experiências numa cooperativa e enfrentam agora a maior
das dificuldades: vender o artesanato.
De acordo com uma artesã, o que falta é o
transporte. “A gente não tem como levar a louça para nenhum lugar. Se a gente
tivesse ao menos um pau de arara...’, sonha a humilde senhora. No barro ou na
terra, os quilombolas sempre procuram se embrenhar pelo melhor caminho.
“Trabalhar a gente já está acostumado nessa roça e nesse coco, mas um dia
Deus vai ajudar, não é mesmo?”, declara, com fé, outra artesã.
“Meu sonho é ser médica”, diz jovem negra de
Cuiabá
Em Cuiabá, capital de Mato Grosso, há 480 mil
habitantes, dos quais 31 mil são negros. Gisele Aparecida Costa faz parte
dessa população, uma jovem que ainda procura seu espaço no mercado de
trabalho. Nos postos do Sistema Nacional de Empregos do Mato Grosso, apenas
12% das pessoas que procuram trabalho se declaram negras. Quase 48% delas
afirmam que são pardas. É uma maneira de minimizar os efeitos da
discriminação contra a cor da pele.
Gisele mora com a tia e os primos. Em casa,
aprendeu a não ter medo do preconceito. “Meu sonho é ser médica. Admiro essa
área de saúde e gosto também de ajudar as pessoas”, comenta Gisele, que, por
enquanto, ainda faz curso de vendas. “E pretendo logo em seguida arrumar um
serviço para poder pagar o cursinho de técnico de enfermagem”. Em todo o país
existem cerca de 300 mil médicos. Gisele nunca tinha visto um negro exercendo
esta profissão.
O doutor Edmar José Anunciação, perito do
Instituto Médico Legal (IML) de Cuiabá, dá um precioso conselho para a moça
que quer seguir os seus passos profissionais: “Acho que há poucos médicos
negros como eu por causa das condições financeiras. A maioria da população
negra nem chega à universidade. O conselho que dou para Gisele é que tenha
muita força de vontade. Deve estudar, estudar e estudar”.
|
Acesso em 16 de Novembro de 2012.
0 comments:
Postar um comentário
Deixe seu comentário mais seu nome completo e localidade! Sua interação é muito importante!