27/07/2023

Para quem você escreve? Por Tiago Novaes

Lucélia Muniz

Ubuntu Notícias, 27 de julho de 2023

@luceliamuniz_09     @ubuntunoticias    @ectiagonovaes

Por Tiago Novaes - Romancista & Ensaísta

Não diga que é para você. Você escreve a obra que gostaria de ler. Você procura realizar-se com ela e ela é provavelmente fiel aos seus valores. Mas se você estivesse escrevendo apenas para si, poderia contentar-se com um diário. Se pretende publicar um livro ou se já publicou um, você será uma parte necessária do processo, mas não suficiente.

Quando te pergunto para quem você escreve, estou te propondo que pense um pouco nesta figura imaginária e ficcional que se debruçará sobre a sua ficção. A figura disposta a abrir o seu livro, inteligente a ponto de entendê-la, generosa a ponto de amá-la e recomendar a leitura aos amigos.

Imagine que o seu autor predileto lesse o seu livro. O que ela ou ele diria a respeito?

A minha primeira leitora alfa era a Ana, uma amiga do colégio, estudante de Letras, amante voraz dos livros, que sempre me ensinava coisas. Somos interlocutores há 29 anos, sinal de que temos semelhanças e diferenças importantes. Hoje, muitos livros depois, conheci muitos leitores, críticos, colegas escritores. Escrevo para eles, mas acho que também escrevo para os livros que já li e que amo.

Um livro pode ser como um labirinto para o leitor. Quando Umberto Eco escreveu “O nome da rosa”, abriu-o com cem páginas exigentes. Ele não queria que sua obra fosse lida por impacientes e desatentos, e aquelas cem páginas são como um rito de iniciação que dirá se você é merecedor da narrativa, daquela aventura literária.

Eu nunca concebi uma obra como um rito de iniciação, mas me vi construindo um voo o mais alto do que poderia alcançar. Estes voos resultaram em livros deliberadamente exigentes, e que os críticos consideraram que – vou citar um deles aqui, numa carta que me escreveu – “seu romance terá que esperar, talvez, por melhores dias, maiores horizontes na vida brasileira, coisas reconquistadas – eventualmente – e o fim do limbo entre o término da noite e o dia ainda não nascido, para ser apreciado pelo menos na justa medida.”

Mas também escrevi livros que pretendiam capturar o leitor desde as primeiras linhas. Livros urdidos como conversas, feitos para que não haja atrito na leitura, para que o leitor se esqueça de si e abandone-se ao processo.

É o caso de “Algoritmo”, uma novelinha para ser lida numa sentada. E também o “Estado Vegetativo”, meu primeiro romance, uma ficção policial. Certamente o livro que estou escrevendo agora.

Para quem você escreve neste momento?

Dentro desta pergunta tem uma outra.

Como criar uma obra digna de amor?

Gabriel García Marquez uma vez escreveu que cada frase de seu Cem anos de solidão foi elaborada para que o leitor desejasse ler a frase seguinte.

Elena Ferrante, autora da tetralogia napolitana, termina cada capítulo com uma questão narrativa, uma reticência que resgata a curiosidade do leitor e o deixa querendo mais.

O autor de não ficção Malcolm Gladwell dizia que inseria beats nos seus livros que eram como “puxadores de conversas” em eventos sociais, e que resultariam na pergunta inevitável: onde você leu isso?, seguida do “Puxa, você não sabe. Estou lendo um livro muito bacana de um jornalista chamado Malcolm Gladwell! Você precisa ler!”

Nada mais poderoso que o boca a boca. Nada mais poderoso que o contágio.

Voo ou tobogã, bons livros são aqueles que passam a habitar a nossa percepção imediata. De algum modo, queremos viver dentro deles durante a leitura, e por isso o abrimos sempre que surge uma oportunidade. Mesmo quando não temos tempo. Nas brechas do tempo. O tempo da leitura, diria o Pennac, é como o tempo do amor: é sempre um tempo roubado.

São obras que produzem um efeito de contágio. Quero falar aos outros sobre ela, indicar a leitura, mostrá-las quando alguém vem me visitar.

1. São contagiantes as obras que geram surpresa, que quebram um padrão a que as pessoas estão acostumadas. Guimarães Rosa fez isso quando transformou o sertão num universo mítico. Enxergamos o sertão de outra forma depois dos seus livros.

2. São contagiante as obras que propõem o que nunca ninguém havia proposto até então. Rachel Cusk inaugura uma obra em que a protagonista praticamente se retira da narrativa, preservando-se como ouvinte e espectadora, alguém que captura o instante e o impregna dos discursos de um vizinho, de seu cabeleireiro, de seus alunos. Carolina Maria de Jesus propõe um retrato por escrito de sua realidade como catadora e favelada, uma realidade que para muitos não seria digna de ser colocada no papel.

3. São contagiante as obras bem urdidas, bem escritas, bem arquitetadas, que nos colocam em um mundo que fale do nosso sem ser particularmente o nosso. A violência de Guerra dos Tronos, as suas intrigas, a execução sumária de personagens que vamos aprendendo a gostar é sinal de uma novidade, e também de uma trama narrativa amarrada à perfeição.

4. São contagiantes as obras que participam de uma escola de pensamento. Borges não nasceu sozinho. Ele estava em companhia de Xul Solar, das irmãs Ocampo, Bioy Casares, Juan Carlos Onetti, Macedonio Fernández, Felisberto Hernández, contemporâneos de uma visão que enlaçava a periferia e o universal e que propunha novos paradigmas a partir de fascinantes equações ficcionais.

E são contagiantes pelas razões mais imprevistas: porque conversam com a nossa situação e nosso padecimento, porque nos convidam a viajar, porque seus leitores integram um clube de alquimistas, cúmplices, detentores de um segredo que sopra de ouvido em ouvido. Porque grita como sempre quisemos gritar.

Um abraço!

Tiago

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